Análise de Conjuntura Social

Compartilhe:

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

 

OS DESAFIOS DA CONJUNTURA BRASILEIRA

Grupo de Análise de Conjuntura – CNBB
No 03, junho de 2020

1. Introdução
A proposta deste texto é consolidar alguns elementos estruturais acerca dos aspectos conjunturais e descortinar os tempos em que vivemos. No caso específico, destacam-se as dimensões social, política, econômica e cultural da realidade mundial e brasileira. O objetivo é dar maior profundidade aos temas e textos que servem de subsídios para as reflexões e as tomadas de decisão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de suas pastorais e organismos. Assim, num esforço sistematizador feito pela equipe de Análise de Conjuntura da CNBB, formada por clérigos, professores convidados das universidades católicas e por peritos convidados, este material tenta responder a esta problemática multifacética de forma mais objetiva possível. Há questões estruturais que devem ser desenvolvidas e apresentadas, para, num processo de diálogo permanente, estabelecer alguns marcos explicativos para as conjunturas, tão dinâmicas quanto velozes em tempos e contratempos que muitas vezes nos escapam.

Não há a pretensão, é claro, de se oferecer uma avaliação tão completa que trate de tudo possível. O objetivo é oferecer ao debate os temas estruturais que causam maior impacto e têm maior probabilidade de afetar os passos da caminhada. Da mesma forma, a tentativa parte, tanto no quadro mundial quanto no brasileiro, de questões mais gerais, sem prejuízo de temas mais específicos. Ao fim, destacam-se alguns aspectos exsurgentes da própria conjuntura, pensando em junho de 2020 como um período crítico para a grande crise que estamos atravessando. Para tanto, o texto foi dividido em três grandes momentos. No primeiro deles, cuidamos de estabelecer como chegamos até os dias atuais. Sem nenhum modelo panorâmico, a ideia é construir alguns pontos estruturais neste momento para, num outro, discutir quais são os cenários atuais que nos mobilizam. Depois, com base em uma série de elementos mais prospectivos, a proposta é oferecer algumas sugestões e práticas para construir a esperança.

2. Não podemos perder de vista o que nos trouxe até aqui
O mundo inteiro já passava por uma crise quando explodiu a pandemia. Haveria um aprofundamento da estagnação econômica e um aumento das tensões políticas em quase todos os cantos do planeta. O coronavírus foi um catalisador. O Papa Francisco já falava, em 2019, da necessidade de “re-animar” “uma economia que mata”! O quadro, todavia, não era apenas de uma crise econômica. Nos campos das políticas, das relações sociais e humanas, das ecologias, das exclusões e desigualdades, bem como em tantas outras, havia muitas e profundas tensões estruturais e conjunturais. Estas se agravaram em 2020, a partir de uma nova geopolítica do coronavírus. Há o risco, conforme tem nos alertado o Papa Francisco, de ocorrer um “genocídio viral”.

Chegamos até aqui após um século em que as mudanças foram muitas e ganharam uma velocidade muito grande. Um dos aspectos importantes é que o dinheiro e as finanças ganharam autonomia e passaram a dominar a política. Durante muito tempo, o modelo político e o papel do Estado contiveram a expansão econômica. Se a democracia ocidental (ou liberal) estruturou os limites ao mercado, alguns aspectos da globalização e das mudanças do modelo capitalista permitiram que outras relações sobressaíssem nas primeiras décadas do século XXI.9 O capitalismo venceu, sob o
domínio financeiro de estruturas privadas, como o BIS, que comandam a política monetária exercida pela maioria dos bancos centrais do mundo, a qual, por sua vez, alimenta e sustenta o funcionamento do Sistema da Dívida e a contínua produção de crises.

As transformações do século XXI não poderiam ser analisadas sem uma compreensão do século XX, que foi rico em acontecimentos e mudanças sociais. Vive-se as consequências das mutações ocorridas no século passado, que não se faz tão distante assim, bem como das próprias características deste século. A análise do presente pode ser, na história, uma ruptura, de pontos altos, de completude ou de retorno… exige avaliar que o tempo em que vivemos não é o único ou o fundamental ponto de ruptura na história, onde tudo está completo e recomeça de novo.

As duas guerras mundiais (Primeira, de 1914 a 1918, e a Segunda, de 1939 a 1945), por exemplo, trouxeram, pelos números e pelas novas facilidades de comunicação, uma percepção de total destruição da humanidade.15 Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo continuou a viver em uma constante ameaça de destruição mútua com a Guerra Fria, conflito originado na disputa entre Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). No período entre guerras aconteceram profundas crises sociais, políticas e econômicas. Da Revolução Russa de 1917 à Grande Depressão (iniciada em 1929), associada a graves tensões sociais e políticas, essas crises culminaram com a ascensão dos regimes totalitários em alguns países europeus, com graves consequências para o resto do mundo. Tensões socioeconômicas e geopolíticas foram as causas da Segunda Guerra Mundial. Houve um baque à hegemonia do capitalismo e regimes socialistas se institucionalizaram em alguns países. Para o historiador Eric Hobsbawn, há uma continuidade da Primeira Guerra Mundial no conflito iniciado em 1939. Ou seja, os 21 anos que separam os dois acontecimentos seriam uma pausa nas ações bélicas, mas os eventos do período seriam o elo entre as duas grandes guerras.

Os reflexos deste período na América do Sul geraram décadas de atraso de suas economias, governos autoritários e uma frágil organização social, política e econômica, especialmente daqueles países da região sob a guarda direta dos Estados Unidos. Na região, a redemocratização trouxe consigo um neocolonialismo transvestido de auxílio financeiro, além de divulgação de ideologias e políticas que foram e são absorvidas por tais países, sem que exista uma preocupação na dependência promovida por essa interferência e nas consequências negativas em realidades tão distintas. O crescimento do neoliberalismo na região, a redução da autonomia internacional e a subordinação a blocos, no século XX, ofereceram os marcos do controle assistencialista na região. O fim da Guerra Fria trouxe, como uma de suas consequências, uma enxurrada de armas ao mundo, pois este foi o resultado da corrida armamentista travada entre EUA e URSS (quarenta anos de competição produzindo armas em nome de uma guerra nunca travada). Economias militarizadas precisavam cobrir seus orçamentos com o déficit causado por seus grandes e improdutivos gastos militares, despejando no mercado mundial milhares de armas que mais tarde seriam encontradas nas ruas e periferias dos países seja da América do Sul ou da África, independentemente do lado ao qual estes se alinharam.

Ainda sob a Guerra Fria, o mundo central teve um boom econômico em que a produção mundial de manufaturas quadruplicou entre o início da década de 1950 e o início da década de 1970, e, o que é ainda mais impressionante, o comércio mundial de produtos manufaturados aumentou dez vezes. Este crescimento econômico foi percebido na América do Sul, mas não em tamanha intensidade. Dentre suas consequências ocorreu forte processo de urbanização da sua população, que deixou o campo cada vez mais mecanizado em busca de novos postos de trabalho nas cidades, um crescimento urbano desordenado, em que o trabalho se concentrou no centro e nas partes nobres das metrópoles, enquanto a população trabalhadora foi jogada nas periferias, distantes e sem grandes investimentos em infraestruturas. Também, houve uma maior concentração de renda daqueles já eram detentores das riquezas, alicerçando um crescimento em desigualdades sociais.

Apesar do desenvolvimento econômico e industrial do Brasil durante o final da década de 1960 até a metade da década de 1970, este processo se pautou no aumento da desigualdade social, com baixos salários à população que se tornava “operários” na transformação de um país rural para urbano, e a concentração de renda e lucros daqueles que detinham o poder e os meios de produção. Com o passar do tempo, esta situação só se agravou. Além de deixar uma “herança” sem precedentes: uma dívida externa bilionária que trouxe recessão, após o período de falso crescimento, desvalorização cambial e uma inflação galopante.19 Houve, ainda, muitas inovações tecnológicas que transformaram a vida das pessoas, seja pelas comodidades oferecidas (geladeiras, freezers, televisões, telefones portáteis etc.), seja pela possibilidade de acesso e conhecimento dos fatos em tempo real. A televisão tornou-se utensílio comum nas casas, possibilitando o conhecimento quase que instantâneo dos fatos. A Guerra do Vietnã (1959-1975) foi televisionada para quase todas as partes do mundo.

A chamada “terceira revolução industrial”, na segunda metade do século XX provocou o surgimento dos eletrônicos, com grande impulso às telecomunicações e a difusão dos computadores. Por meio das novas tecnologias, abriram-se as portas para as expedições espaciais, a biotecnologia, a automação etc. Consolidou-se uma “sociedade em rede” que, segundo Castells é “caracterizada por uma mudança na sua forma de organização social, possibilitada pelo surgimento das tecnologias de informação num período de coincidência temporal com uma necessidade de mudança econômica (a
globalização das trocas e movimentos financeiros) e social (a procura de afirmação das liberdades e valores de escolha individual e iniciada com os movimentos estudantis de maio de 1968)”.

Porém, a principal herança do século passado ao atual foi o aumento das desigualdades sociais e a concentração de renda, e, com isto, um duro processo de criminalização da pobreza como forma de controle desta população que vive à margem da sociedade organizada, ignorada pelo sistema produtivo e distributivo.

A crescente disparidade nas últimas décadas entre, de um lado, a acumulação produtiva e expansão material bloqueadas, e, de outro lado, o crescimento expandido de formas fictícias de valorização, desvelou a ausência de qualquer padrão sustentável de acumulação de capital. Este fenômeno foi decorrente, por sua vez, de uma queda estrutural e não meramente cíclica das taxas de lucro, onde nem mesmo as crises lograram recompor as condições para uma retomada perene do processo de acumulação. Daí que a hipertrofia financeira e o recurso desmedido ao crédito revelaram uma tentativa de acelerar o tempo do capitalismo, antecipando-se o futuro através da criação de capital fictício, num quadro em que a expansão do valor encontra-se comprometida.

Não por outros motivos ganha relevância o debate acerca da vigência de limites internos ao próprio capital que estariam se absolutizando neste século XXI. Tais limites seriam derivados da potencialização da contradição em processo, a saber, a tendência posta pela lógica concorrencial do capital de transformar o trabalho vivo em obsoleto para a produção de riqueza material, ao passo que o mesmo capital prossegue exigindo a extração de mais-trabalho como pressuposto de sua própria valorização.  Tal travamento da expansão do valor e da mais-valia estaria ganhando corpo com os desdobramentos da Terceira e Quarta Revoluções Industriais, em que a ciência e o conhecimento ganham um lugar cada vez mais proeminente nos dispositivos de produção. Se não temos aqui, por um lado, as condições de esmiuçar a hipótese da vigência de um limite absoluto do capital, cremos que podemos, por outro lado, assinalar como válida a noção de uma crise estrutural do capital. Crise esta cujos desdobramentos implicam transformações adversas no mundo do trabalho e na capacidade de integração dos indivíduos às diferentes economias, aumento das fricções nas relações internacionais, na geopolítica e a acentuação da irracionalidade da dinâmica fetichista capitalista.

Herdamos, portanto, uma crise econômica, mas também ambiental, social, cultural e política. Contudo, até o atual momento, a economia e o “mercado” não estavam sob a limitação do espaço decisório da política, especialmente sob as democracias em crise desde o começo do século, especialmente nesta década que termina no fim deste ano. As próprias Constituições dos países e a noção de soberania foram relativizadas como resultado de um período de muitas e expressivas mudanças nessas relações.

Diante disto, é possível afirmar que a economia mundial tem uma permanente e poderosa influência sobre os demais temas, ao mesmo tempo em que se destaca uma contradição em suas condições. De um lado, isto pode levar a um reducionismo, o qual, acompanhado de uma mercantilização das relações humanas e sociais, pode permitir uma análise que leve à apologia do caos. Não é esta a intenção, pois o que se destaca é um mundo em permanente mudança. Todavia, não está errado o Papa Francisco que, no início de seu pontificado, apontou uma quantidade tão expressiva de conflitos espalhados pelo planeta que poderiam indicar estarmos vivendo uma terceira guerra mundial.

Um dos aspectos mais relevantes desta realidade tem sido a questão ambiental, submetida a um dos períodos mais complexos da história humana, no ápice do antropoceno, tão destacada nos documentos, textos e intervenções do Papa Francisco, como a Laudato Si’ e a Querida Amazônia. Nesse contexto, há quatro fenômenos que são essenciais para a construção de qualquer análise feita a partir do nosso lugar e em nossos tempos atuais: (1) a financeirização da economia; (2) a relação entre desigualdades sociais e exclusões; (3) a crise ambiental e (4) a crise da democracia em um mundo majoritariamente neoliberal.

Vivemos numa época de desigualdades comparáveis às do final do século XIX. As disparidades na distribuição do rendimento (e da riqueza) atingiram níveis inimagináveis ante as conquistas sociais e tecnológicas. A riqueza mundial, potencializada pelos incríveis desenvolvimentos tecnológicos e pela globalização econômica, tem aumentado exponencialmente, mas fica nas mãos de pouquíssimos. Salários baixos, empobrecimento e falta de expectativas, em contrapartida, são o problema de muitos.

O receio pelo emprego com a crescente automação e frequente desadequação de qualificações ou de competências, a escassez da oferta agudizada pela crise e largamente atribuída à presença de imigrantes, a quem se associa, com facilidade, atos de violência ou mesmo de terrorismo (cada vez mais próximos de casa), geram uma enorme insegurança e ajudam a alimentar ódios: raciais, de gênero, contra os estrangeiros e aos refugiados, e a todos os que não são iguais a nós; contra os políticos que fazem parte do establishment etc.

As redes sociais, que disseminam informação sem filtros, frequentemente falsa ou alterada, capciosa e representando interesses, ajudam muitas vezes a propagar os medos e os ódios. Houve uma aceleração destas características dada a transformação estrutural dos meios de comunicação, a partir de uma sociedade da indignação.29 A esfera pública ficou mais líquida e acelerada, lembrando muito o turbilhão de um liquidificador eternamente ligado: som, fúria e ruído apenas!

No século XX, e depois de crises econômicas graves, houve um surto semelhante com opções políticas e escolha de líderes autoritários, figuras em certa medida paternais, que nos diziam o que fazer e pensar e nos davam a segurança necessária para fazer face ao dia a dia difícil. Infelizmente, ainda no século XX, uma certa normalidade só foi retomada com o eclodir das guerras. Em particular, só depois da Segunda Guerra é que se percebeu a importância do desenvolvimento de economias equilibradas, de justiça social e políticas redistributivas fortes. A implementação do estado de bem estar e seguridade social (sobretudo na Europa) permitiu anos de paz e de social-democracia. Políticas mais ou menos keynesianas e a aposta em modelos de busca do pleno emprego trouxeram um equilíbrio ao panorama político-institucional que nos habituamos a olhar como sendo a normalidade. Não é mais. Há uma economia (ir)real, na qual, em princípio, o dinheiro não é moeda e tampouco é papel-moeda de papel. São papéis (títulos) que demandam uma confiança e que não existem na quantidade que se supõe. Em caso de uma crise como a de 2008, os riscos de implosão do sistema financeiro assombram a realidade produtiva.

Uma síntese sobre o século XX deve considerar uma análise mais minuciosa da globalização econômica, da ampliação dos movimentos identitários, das consequências das novas tecnologias da informação e da comunicação na conformação de diversas sociabilidades (tópico fundamental para se compreender, por exemplo, temas como a chamada pós-verdade e o advento de esquemas de manipulação via fake news), do recrudescimento de narrativas antipolíticas e sua relação com o desmonte dos estados de bem-estar-social, da consolidação da China como novo polo geopolítico e econômico, das questões ligadas à destruição do meio ambiente (problemas climáticos e socioambientais – que são uma das chaves para a compreensão das pandemias e de conflitos pela água e até mesmo de fluxos migratórios) e de outras discussões como o individualismo associado ao consumismo desenfreado e do recrudescimento de movimentos ultraconservadores, incluindo o surgimento de novos fundamentalismos religiosos, inclusive em espectros do cristianismo. Por se tratar de temas complexos, não aprofundaremos tais pontos nesta análise.

3. Os cenários atuais que nos mobilizam
Vivenciamos dias difíceis e as perspectivas de curto prazo são ainda piores. A combinação da crise econômica global, que já era avistada no final de 2019, com a emergência da pandemia do coronavírus, que paralisou as cadeias produtivas globais e provocou uma crise sanitária de grandes proporções, tem gerado uma realidade impensável há seis meses. No Brasil, a crise adquiriu velocidade e intensidade superior com a adição do componente político.

O discurso da volta à normalidade nos impele a aceitar que o “normal” era o modelo econômico altamente concentrador de riqueza e renda que, além de exclusão social e degradação ambiental, produzia sistemáticas crises de governança local e global, a agudizarem a erosão democrática, a dignidade humana e as relações sociais.

3.1. Pandemia e sociedade
No campo humano, sanitário e social, a propagação da contaminação pela COVID-19 está aumentando e não se vê quando essa espiral vai diminuir. O grande número de contaminados e a imensa perda de vidas tem colocado o Brasil no epicentro da pandemia.

O negaciosismo do Poder Executivo Federal explica em boa parte o colapso do sistema sanitário. Depois de atingir as classes alta e média, o coronavírus ataca as populações pobres das periferias, quando o sistema sanitário já está congestionado e não tem como atender dignamente as parcelas mais carentes da sociedade brasileira. Com isto, o coronavírus está permitindo uma visibilidade social às favelas e às periferias, por meio da imprensa, evidenciando o seu déficit social em termos de saneamento e de densidade populacional extremos. A pandemia revela as mazelas da
desigualdade estruturante da sociedade brasileira. A desigualdade social aumenta diante da morte. Faz parte da história o diferencial da esperança de vida que pode chegar a 20 anos,
32 comparando, por exemplo, os bairros ricos e pobres de São Paulo. Hoje, a taxa de mortalidade devida ao
coronavírus é dez vezes maior em Brasilândia que no Morumbi.

O atual governo central optou por caminhos tortuosos no enfrentamento à pandemia. Na contramão da ciência, das recomendações da Organização Mundial da Saúde e desdenhando de experiências exitosas no combate à COVID-19, como o isolamento social, criou uma “tempestade perfeita”, associando de maneira enviesada as crises econômica e política à crise sanitária.34 Essa associação indevida mitigou esforços para o combate à pandemia e produziu graves tensões institucionais, com potencial para aumentar os conflitos sociais e produzir uma erosão democrática. A crise será de longa duração. Para desacelerar a progressão da epidemia e “achatar a curva”, como o esforço pela desaceleração ficou conhecido, as medidas inéditas estarão conosco por muito tempo. Uma vez alcançado o pico da epidemia, serão mais vários meses de semiparalisia até que seja seguro começar a abandonar as medidas excepcionais de saúde pública. Será um recomeço gradual. Quarentenas intermitentes muito provavelmente serão o nosso “novo normal”. É esse o cenário com o qual trabalham cientistas, infectologistas e pessoas que estão na linha de frente do combate à COVID-19. As razões são múltiplas: da falta de conhecimento sobre a imunidade conferida pelo vírus à imprevisibilidade das manifestações clínicas da doença; das dificuldades de desenvolver uma vacina para um vírus novo à logística de distribuí-la por todo planeta, caso ela venha a existir.

A crise humano-sanitária é uma boa oportunidade para repensar a saúde pública, e concretamente o SUS. Priorizar a vida contra ameaças que atingem a sociedade significa subordinar a racionalidade mercantil, que fixa o preço em função da oferta e da demanda, a um planejamento sanitário que previne doenças por uma infraestrutura sanitária eficaz. Até de um ponto de vista da economia pública, fica mais eficiente e barato, pois prevenir custa menos e limita o poder mercantil da indústria farmacêutica.

3.2. Economia

 

Estamos diante de uma das maiores crises econômicas da história. Como exemplo, o PIB dos EUA caiu 4,8% no primeiro trimestre de 2020. Esse é um número significativo face ao fato de que, no primeiro trimestre de 2020, apenas dez dias de quarentena e interrupção dos negócios foram decretados. Em outras palavras, apenas 11% do período teve interrupção dos negócios (10 em 91 dias) e a atividade econômica já registrou uma queda de 4,8%.35 Considerando-se que ainda serão somadas as falências e perda de renda subsequentes, é possível pensar em quedas econômicas superiores a 7% em 2020, podendo chegar a 10%, ainda que se adotassem medidas protetivas. Cinco semanas de quarentena nos EUA, também como exemplo, adicionaram 30 milhões de desempregados,37 uma tendência que será materializada nas demais economias mais cedo ou mais tarde, sendo que no caso brasileiro há o agravante de uma massa significativa de desempregados anterior ao problema sanitário.

Trata-se de uma parada súbita da economia mundial como jamais vimos. E, ao que tudo indica, não será uma parada de curta duração, como a observada em crises recentes anteriores, como a crise financeira de 2008/2009. Não se trata apenas da incerteza atrelada à epidemia, mas das medidas de saúde pública que estão sendo tomadas mundo afora. Para desacelerar a propagação do vírus, fronteiras, escolas, universidades, bares, restaurantes, escritórios e igrejas estão sendo fechados. Estas medidas estão tendo um impacto enorme sobre a atividade econômica, com consequências dramáticas sobre a renda e o emprego, especialmente para as parcelas mais pobres. A economia mundial passa por um fenômeno nunca visto, uma parada súbita, afetando a oferta e a demanda.

 

É por esse motivo que países começaram a adotar políticas extraordinárias para atenuar os efeitos da crise. Em tempos de calamidade inédita e risco de depressão, metas fiscais e a evolução da dívida tornam-se absolutamente irrelevantes. Não se compara o desajuste fiscal proveniente do que é necessário agora ao quadro de depressão que se instaurará se as medidas forem insuficientes ou se governos forem contaminados pela inação.

Alguns países com economias mais fortes e maior capacidade para expandirem os gastos e o crédito, além da fundamental assistência aos mais pobres, através de políticas de transferência de renda, poderão ser menos afetados, e se recuperar um pouco mais rápido. Este não é o caso do Brasil, onde a crise econômica poderá ser longa, ainda mais com um ambiente político conturbado, e sem uma liderança que tenha na ciência um norte para o enfrentamento do problema.

Se o mundo sofre com os efeitos de uma pandemia, os brasileiros sofrem e provavelmente sofrerão ainda mais. Além de uma pandemia, convivemos com um verdadeiro pandemônio, em quase todos os sentidos que possam ser atribuídos à palavra.38 Se o problema já é de difícil solução para aqueles que tratam a questão com responsabilidade, no Brasil, os problemas tendem a se transformar em catástrofe.

Um dos componentes econômicos mais relevante para os futuros desdobramentos desta crise sobre a economia brasileira é o investimento. Historicamente observa-se que o volume de investimentos no país foi insistentemente insuficiente, por isso, a grande dificuldade de expansão das atividades e crescimento longo da economia. Com as restrições de gastos do governo federal em função do teto de gastos e da necessidade de redirecionamento de verbas orçamentárias provocado pela pandemia, pode-se ter certeza de que os investimentos se retrairão fortemente, trazendo grandes dificuldades de recuperação econômica nos próximos anos.

Outra variável de grande importância para a análise da estrutura econômica do país que permite avaliar as possibilidades de retomada do crescimento econômico a partir da pandemia atual é o nível de endividamento das famílias brasileiras. Historicamente elevado face ao padrão de consumo imposto pelo sistema produtivo e distributivo, vem se observando sistemático crescimento deste nível, alcançando, em fevereiro de 2020, a cifra de 65,1% das famílias brasileiras. Como o agravamento da crise econômica provocada pela pandemia não permitirá reversão desta tendência, conclui-se pela dificuldade de retomada do consumo e, portanto, das expectativas dos empresários, com reflexos negativos esperados nos futuros níveis de emprego e renda.

 

Como exemplo da crise estrutural, o privilégio financeiro dos bancos chegou a um nível no Brasil muito superior ao que ocorre em outros países. Historicamente, a maior parte dos recursos do orçamento federal destina-se ao pagamento dos gastos financeiros com a dívida pública, que engloba
diversos mecanismos financeiros que provocam o aumento do estoque de títulos públicos em trilhões
; porém, não há contrapartida alguma em investimentos no país.

No momento em que se instala a pandemia do COVID-19, esse privilégio financeiro ganha relevância ainda mais impressionante. Em 23/03/2020, o Banco Central liberou um pacote de R$1,2 trilhão para os bancos, conforme relatório do próprio Banco Central. A justificativa para esse pacote foi o aumento da liquidez dos bancos para facilitar a concessão de empréstimos a juros baixos para as empresas durante a pandemia. No entanto, o noticiário tem mostrado o contrário: dificuldade de obtenção de empréstimos e elevação dos juros, principalmente para as pequenas e médias empresas. Porém, o volume de recursos que os bancos deixam de emprestar e sobra em seu caixa é aplicado no Banco Central e remunerado diariamente.

Adicionalmente, a EC 106/2020, aprovada pelo Congresso Nacional em poucas sessões virtuais (PEC 10), autorizou a atuação do Banco Central em mercado secundário (mercado de balcão), podendo comprar papéis financeiros privados, sem limite de valor. O presidente do Banco Central afirmou que vai gastar R$972,9 bilhões para comprar “ativos privados” dos bancos, ou seja, quase um trilhão de reais.46 Assim, por trás da desculpa de resolver problemas da pandemia, os bancos conseguiram aprofundar seus privilégios na ordem de trilhões, pois, além de receber crédito extraordinário de R$1,2 trilhão, ainda irão trocar os papéis de sua “carteira podre” por títulos da dívida pública e seus generosos juros. O aumento de trilhões de reais no estoque da dívida pública provocará o agravamento do arrocho orçamentário, com a consequente redução de direitos sociais, além da perda de patrimônio público e reservas, ou seja, um rombo de trilhões de reais aos cofres públicos e à sociedade, em troca da “carteira podre” dos bancos.

 

Enquanto bancos são beneficiados com trilhões de reais, entre outras medidas de favorecimento do setor, como a Securitização, a morosidade e a ineficácia na implementação de políticas de garantia de renda mínima às populações mais pobres, o possível colapso de cadeias produtivas, levando à falência milhares de pequenos negócios e o aumento do desemprego, podem ser o combustível para a explosão de convulsões sociais, com sérios riscos à vida dos brasileiros e às instituições democráticas. Situações de desespero e pânico são previsíveis, com riscos de invasão a hospitais, saques a lojas e supermercados e revoltas sociais.

Para a superação do atual modelo, deve-se buscar a criação de inovações fora do sistema econômico tradicional, gestadas a partir das experiências acumuladas por movimentos sociais e outros atores da sociedade, para além das soluções que, novamente, são impostas pelo chamado “mercado”. A situação atual exige “a primazia do trabalho sobre o capital, do humano sobre o financeiro, da solidariedade sobre a competição”.

 

3.3. Política
Entre outros fenômenos sociopolíticos, foi a partir da Operação Lava Jato que novas forças sociais conservadoras se rearticularam diante do vácuo político deixado pela crise dos maiores partidos políticos em decorrência do combate à corrupção. Esse fenômeno contou com uma forte pressão midiática, legitimando decisões judiciais da primeira instância da Justiça Federal de Curitiba, aplicando o instituto da delação premiada e a lei que definiu o crime de organização criminosa.

O silêncio do Supremo Tribunal Federal (STF) foi um grito de alerta contra a falta de rigor na aplicação dos precedentes sobre a mesma matéria, criando o famoso jargão: “a República de Curitiba”, interpretações estas que produziram uma desestabilização da política nacional e o crescimento de movimentos sociais de ultradireita. A grande mídia nacional apresentou um falso dilema jurídico, ou seja, a sociedade aceitou a judicialização da política como uma resposta ao impacto da dinâmica interpretativa da legislação constitucional submetida à finalidade do “combate à corrupção”, custe o que custasse.

As distorções do papel do Poder Judiciário representaram a opção pragmática da aplicação das normas em nome de uma agenda anticorrupção criando informalmente o que se denominou “partido da Lava Jato”. As instituições do sistema de justiça passaram a jogar e modificar as regras
constitucionais em plena tensão política, alterando seus fundamentos jurídicos para garantir que certos jogadores não tivessem sucesso nas eleições de 2018.

A entrada de Sergio Moro no governo de Jair Messias Bolsonaro colocou em xeque a dita “neutralidade” do então juiz e foi objeto de troca de mensagens pelos integrantes da Lava Jato, conforme ficou comprovado no vazamento de mensagens, conhecido como Vaza Jato. Procuradores da força tarefa criticaram Moro por sua entrada no governo, porque poderia prejudicar a credibilidade da Operação Lava Jato. A hermenêutica constitucional desenvolvida pelo ativismo judicial do Supremo no caso da Lava Jato fragilizou as regras previstas na Constituição. A saída de

 

Sergio Moro do governo exige cautela para a análise de todas as informações que ainda serão trazidas pelo agora ex-ministro.51

É nesse cenário que o Governo Bolsonaro faz parte de um fenômeno mundial de ascensão de governos extremistas, autoritários e, em alguns casos, com traços neofascistas.52 São governos que, para implantar seus projetos econômicos neoliberais, atacam as instituições democráticas, com vistas
à implementação de regimes políticos autoritários.

Bolsonaro, com o apoio de militares das Forças Armadas e das polícias estaduais, das milícias, da maçonaria, do fundamentalismo religioso, vem desenvolvendo uma política de ataques às instituições democráticas, principalmente o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Às vezes, os ataques são retóricos; em outras, expressam-se sob a forma de incentivo e participação em manifestações; e ainda, materializam-se em medidas concretas, como foi o caso da ampliação do acesso das pessoas a armas de fogo.

O Presidente da República, desde a sua posse, não tentou desenvolver uma política de união nacional. De união de forças para desenvolver um projeto em prol do país, como é frequente em inícios de governo. Ao contrário, implementou um conjunto de ações que o levou não somente ao conflito com sua oposição tradicional, como também com setores que o apoiaram. Desde a implementação da sua política irresponsável de enfrentamento da pandemia, ganhou a oposição da maioria dos governadores e prefeitos das grandes cidades. Cresce também seu isolamento no Congresso e no STF. É o presidencialismo de colisão.53

Em 2020, o Presidente confirma sua trajetória autoritária, atacando as instituições republicanas, principalmente o Congresso e o STF. No Congresso, aproxima-se da velha política do é dando que se recebe numa aliança aparentemente nada republicana com o Centrão, que está ganhando cargos públicos. 

Nesse cenário, os militares ocupam cada vez mais espaços no governo. São milhares de militares “liberados” para tomar conta da administração pública. Está em curso uma militarização das instituições do Poder Executivo, como acontece no Ministério da Saúde e, inclusive, nas escolas militarizadas. Essa “intervenção” dos militares insere-se na história político-militar da República, hoje, com a invocação abusiva do artigo 142 da Constituição Federal (rechaçada por ministros do STF e a OAB). Até hoje, o país não conseguiu se liberar do papel tutelar das forças armadas.

 

Ao lado dessa ocupação, o governo evidencia, cada vez mais, traços mais autoritários, tomando o controle das forças policiais. Significativa é a recente interferência nas atribuições da Polícia Federal que, instituição do Estado, está submetida às tentativas de controle do governo. Essa medida é caminho de aventuras do passado no Brasil, como também em outros países.

Portanto, tudo indica que Bolsonaro tem uma orientação consciente de gerar o caos social e caminhar em direção a um regime autoritário. Sua ação se caracteriza por tentativas de “aproximações sucessivas” a um fechamento do regime político. Alguns intentos não funcionam, mas contribuem para normalizar ou criar um “caldo de cultura” favorável para a ação autoritária seguinte. Por exemplo, quando fala do AI-5 ou ataca a imprensa, prometendo não renovar concessões de empresas de jornalismo.

O fenômeno mais recente é o crescimento do desgaste do governo frente a amplos setores sociais. Pesquisas apontam um desgaste significativo.54 No entanto, Bolsonaro permanece com apoio popular, inclusive nas camadas mais pobres da população, provavelmente relacionado ao auxílio financeiro durante a pandemia.

O desfecho desse processo pode acontecer em meio ao aprofundamento radical da crise sanitária e econômica com milhares de vidas perdidas e desemprego em altos patamares. A unidade de amplos setores da sociedade para resistir ao autoritarismo é a esperança que vem sendo construída. Como já afirmou a CNBB, “buscar soluções para os problemas do Brasil fora da institucionalidade democrática e em confronto com os poderes da República, coloca em risco a democracia e a integridade do povo brasileiro.”55A luta pela democracia, a cada dia, está se tornando imprescindível para a sobrevivência da população, para a justiça e a paz social.

4. E não podemos deixar de construir a esperança

 

O Brasil é um país riquíssimo e tem imensas potencialidades em todos os sentidos! É fundamental unir a sociedade em torno da formulação de outro modelo que coloque o ser humano no centro e respeite a Natureza, de acordo com os princípios da economia de Francisco e Clara, preconizados pelo Papa Francisco.

Antes de a epidemia eclodir, alguns membros do Congresso já defendiam a flexibilização do teto de gastos primários (deixando fora o gasto financeiro com a dívida pública) trazido pela EC 95 em prol de uma retomada mais forte da economia, para que saíssemos da armadilha do crescimento de apenas 1% ao ano. No momento atual, ante a declaração de calamidade, o teto tem um dispositivo que permite a abertura de créditos extraordinários, o que na prática o suspende por tempo limitado. Formalmente esse tempo acaba no ano que vem, quando ainda precisaremos sustentar a economia diante do cenário de quarentenas intermitentes.

Entre as muitas sugestões para melhorar o mecanismo do teto, tem sido discutida no Congresso sua flexibilização para acomodar o investimento público, fundamental para o enfrentamento da crise de saúde pública, e para uma retomada do crescimento.

O quadro de quarentenas intermitentes também requererá, necessariamente, a adoção de uma renda básica permanente, para tentar sustentar a população mais vulnerável do país nos momentos em que o recrudescimento da epidemia resultar em medidas de distanciamento ou isolamento sociais. Até porque, talvez, não retornemos ao mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 por um longo tempo.

4.1. Importância dos pequenos negócios
Além de medidas macroeconômicas e sociais, um outro componente fundamental na geração de empregos e renda são os pequenos negócios, que nesse ambiente de crise, são os mais expostos à falência e inviabilidades de todo tipo, especialmente a aquisição por parte de grandes empresas, ocasionando prejuízos à economia popular na forma de concentração de mercado. Com seu giro rápido de caixa e alta empregabilidade, além da importância regional56 no interior do Brasil, os pequenos negócios estão necessitados de que a política pública os socorra imediatamente.

Nesse particular, vemos como inútil irrigar o sistema financeiro de liquidez, já que há a necessidade adicional de firmar contratos de empréstimos e garantias, tempo e recursos indisponíveis às pequenas empresas. Com efeito, transferir recursos para o caixa das pequenas empresas, à semelhança dos programas destinados às pessoas físicas, seria mais efetivo. Essa transferência deveria contar com a ampla rede de agências dos bancos públicos e contribuiria em demasia para não arriscar esse segmento a créditos com taxas proibitivas e, talvez mais importante, potencializar a confiança e manter o potencial criativo existente nessas empresas e vocações.

4.2.Importância do investimento público

 

Dada a conjunção da crise econômica com uma potencial crise política, inevitavelmente teremos de nos valer do investimento público durante a fase de reconstrução econômica, pois o investimento privado (essência da proposta básica do Ministério da Economia, através de um Plano de Reconstrução do Estado, com privatizações e concessões) não retornará tão cedo em situação de volatilidade. O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público na economia real, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Boa parte dos analistas econômicos concordam que o receituário neoliberal radical, altamente desfavorável ao investimento público, do ministro Paulo Guedes é o pior remédio para o enfrentamento da crise econômica.

4.3.Saídas possíveis das crises
Repensar os paradigmas da economia de tal maneira que o dinheiro perca poder político e esteja a serviço da economia real. Neste sentido, há algumas propostas para esterilizar a classe de rentistas que parasita a economia e explora os pobres. Hoje parece que há condição mais real de instaurar a renda mínima universal e ter uma política econômica que possa financiar a saúde e a educação, condições necessárias para um desenvolvimento integral. Taxar lucros e dividendos, criar um imposto sobre grandes fortunas, prática corrente no caso de graves crises para relançar a economia, são tarefas necessárias.

No espaço da política, os desdobramentos no delicado quadro atual dependem das iniciativas que tomaremos no auge da crise sanitária… A democracia brasileira vive séria ameaça. A articulação entre as forças democráticas do país é central e urgente. A responsabilidade da CNBB é evidente, com o cuidado de evitar o uso político de seus gestos, num ambiente fortemente polarizado.

Na dimensão social, é preciso dar apoio às camadas mais vulneráveis da sociedade. Isso, para além do trabalho clássico da Igreja, já em curso. Na conjuntura, chamam a atenção as filas para acessar o auxílio emergencial, que são inaceitáveis, pois vão ajudar na propagação do vírus e no colapso do sistema de saúde. Além de estimular o desespero na população… Há lentidão. É necessário cobrar medidas às autoridades, e ficar ao lado dos que ali estão, apoiados pela Igreja Católica, pela solidariedade cristã.

Uma preocupação com as micro e pequenas empresas também é importante. Elas respondem por ¾ dos empregos formais do país. E precisam de crédito fácil e barato para financiar suas despesas fixas (não têm reserva financeira, na imensa maioria). E esse crédito não está chegando na ponta… É uma fila invisível …, mas igualmente dramática. Muitas tendem a desaparecer, na crise. Por sua vez, como o desemprego será elevado e o mercado de trabalho foi flexibilizado e impactado pelas mudanças tecnológicas, sobretudo pela passagem para a era digital (que avança célere na crise), é importante apoiar a bandeira de uma política permanente de renda básica, desde já. A ideia ganha

 

espaço internacionalmente. E o Brasil fez avanços importantes nessa direção nas últimas décadas.

Estamos vivendo uma crise que talvez possa permitir ao Brasil superar o paradigma da casa grande e da senzala.57 Caso contrário, o fosso entre os muitos ricos e a massa de pobres e miseráveis vai aumentar…

4.4.Bandeiras
Diante de uma realidade ou de um futuro que nos apavoram, só é possível superar a paralisia e o desamparo com as imagens de um futuro que desejamos.

É hora de hastearmos nossas bandeiras, para que, tremulando sobre os combates e desastres, elas possam iluminar, orientar e encorajar aqueles que estiverem dispostos a lutar para construir esse futuro desejado.

E quais devem ser nossas bandeiras?
1) A defesa intransigente dos direitos civis e das instituições democráticas do país;
2) A imediata implantação de uma política de “renda básica de cidadania” para os mais
pobres, com base no Bolsa Família ou em um modelo próximo a este;
3) O fortalecimento das cadeias produtivas com foco nos pequenos e médios negócios, com
crédito subsidiado e renegociação de dívidas para trabalhadores, pequenos produtores,
profissionais liberais e comerciantes;
4) A universalização dos serviços públicos essenciais, a partir da compreensão de que saúde,
educação, saneamento e transporte público são direitos dos cidadãos e, como tais, não
podem ser regidos pela lógica da mercadoria e dos mercados;
5) A implantação de forte tributação sobre as grandes fortunas e sobre o rentismo, de maneira
a possibilitar a recuperação da autonomia do Estado, hoje capturado pelo mercado
financeiro.

Medidas como estas têm um efeito direto e imediato sobre os problemas de curto prazo, mas podem ser vistas e tratadas como o prenúncio de uma nova era pós-pandemia. Embora tenham caráter emergencial e visem à solução de problemas conjunturais, podem se transformar em conquistas pelas quais muitos estarão dispostos a lutar para manter numa sociedade pós-COVID 19.

 

Em situações difíceis é que se consegue medir a verdadeira estatura de pessoas, governos e organizações. Diante do perigo, alguns se acovardam e se apequenam. E acabam se tornando menores do que são. Já outros, decidem simplesmente fazer o que acreditam ser o certo, de acordo com seus princípios e valores. Assim, fazem o que precisa ser feito. Por isto, superam o medo. E encontram forças. E vão além do que são. E saem da crise maiores e melhores do que entraram.

Enquanto os principais líderes políticos do país, afundados em suas rivalidades e peculiaridades, continuam brigando entre si, setores da sociedade tomam a frente e se mobilizam na defesa da democracia e de suas instituições atacadas. É possível prever que, apesar da pandemia, o povo brasileiro estará, aos poucos, manifestando-se e iniciando processos de mobilização.

Esta talvez seja a única escolha que nos resta fazer. E por conta dela, algum dia, certamente seremos cobrados. Em algum lugar do futuro, a História nos cobrará a resposta da pergunta que certamente não se calará: “quando tudo parecia perdido, quando os corpos se acumulavam pelas ruas, onde e do lado de quem vocês estavam?”.

5. À guisa de conclusão
Diante das crises que vivemos, acirradas pela crise do coronavírus, a necessidade de permanecer fazendo um esforço permanente de compreensão das questões conjunturais não pode prescindir de um debate mais profundo. O próprio Papa Francisco tem apontado questões que tendam modificar a compreensão sobre um conjunto de avaliações e de práticas que possam ser mais solidárias e inclusivas.

Todavia, os percursos não são simples, exatamente pela complexidade de muitas situações e suas relações multifacetadas. Neste texto, mais explicativo, adotou-se uma abordagem sobre as principais razões que nos trouxeram até aqui. Depois, foram destacadas as questões que nos mobilizam para, ao cabo, apontar algumas práticas de esperança. É kairos.

 


Todas as informações estão na CNBB

Posts Relacionados

Facebook